O Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem aparecido aos olhos do
público como sendo um caos, mas não é um caos. Convém ver a quem aproveita esse
retrato e claro que se chega facilmente à conclusão que aproveita a quem vive
do negócio da saúde: serviços privados e seguros. Não é o caso dos
profissionais do SNS, que acreditam que este é um serviço que está na base, a
par da Educação e da Segurança Social, do que nos resta na luta pela igualdade.
Serviço público baseado no Orçamento Geral do Estado (OGE), o qual vive
sobretudo dos impostos, que são progressivos. Um esforço de compensação das
desigualdades de rendimentos. É também para isto que servem os nossos impostos.
Podemos ter uma doença crónica como a diabetes ou uma doença aguda como um
infarto ou um acidente vascular cerebral, sem temermos ficar na miséria,
endividados ou morrer sem assistência.
Mas é verdade que há problemas reais, que se podem
localizar, aliás diagnosticados, sem que apareçam análises tranquilas no meio
do tumulto. Há atrasos no acesso a consultas hospitalares? Quais, onde e
porquê? Há atraso em cirurgias? Quais, onde e porquê? Há falta de especialistas
nas urgências? Quais, onde e porquê? E tudo o resto, que corre bem, é como nas
famílias felizes, não há drama, não há narrativa. Quem quiser aprofundar estas questões, deve antes de tudo
olhar para a demografia médica. Não nos faltam médicos no total pois temos 500
por 100.000 habitantes e até houve uma correcção regional, tendo aumentado mais
entre 1996 e 2018 no Norte interior e sendo a menor variação em Lisboa e Vale
do Tejo. A questão está na distribuição etária. O número de médicos começa a
descer cerca dos 31 a 35 anos, atinge o menor número entre os 46 e os 50 anos e
sobe de novo aos 56/60 anos. Portanto, dos 31 aos 55 anos, idades com mais
juventude, mais especialistas no pico da força técnica, científica e física, os
médicos atingiram os mínimos em 2013/2014 (200 médicos por 100.000 habitantes).
Se formos ver as especialidades especificamente que diminuíram lá estão a
Medicina Interna, a Pediatria e a Anestesia (INE e estatísticas nacionais da
Ordem dos Médicos) e, sobretudo, diminuíram em Lisboa e Vale do Tejo, que é
onde se fazem ouvir as queixas.
A responsabilidade para isto ocorrer não está neste Governo
nem no anterior. Podem as pessoas gritar que querem o especialista e é natural
que gritem, que o ministério não o pode inventar. Para que um especialista seja
titulado como tal, passam 14 anos de formação – licenciatura, internato e
internato da especialidade e os respectivos exames de entrada e saída. A
responsabilidade está lá atrás nos anos 80 e 90 do século XX, em quem estreitou
o numerus clausus durante alguns anos, de tal modo que eram cerca de 300 por
ano os que conseguiam entrar nas Faculdades de Medicina de todo o país. Mas não
vale a pena fazer agora julgamentos a posteriori, porque não serve de nada.
Trata-se, pois, de focalizar as especialidades que faltam nas urgências
hospitalares e de remediar imediatamente, com real emergência, a falta de
especialistas, sem esquecer que no mercado de trabalho da saúde há concorrentes
fortes desde que a mercantilização se estabeleceu.
Portanto, terá que haver medidas imediatas – recrutamento
internacional, pagamento de serviços, concentração regional de urgências da
especialidade, abertura de atendimentos com mais horário nos Centros de Saúde e
Unidades de Saúde Familiar. A par destas medidas de emergência há então que
prever o que se passará nos anos imediatos e aí coloca-se a questão da
fidelização dos especialistas. Esta discussão tem sido paradoxal. Paradoxal
porque até aqui os especialistas têm desejado ser contratados e agora parece
colocarem-se contra a obrigatoriedade. E paradoxal porque o Governo (Ministério
das Finanças) não contrata os que já lá estão à espera.
Qualquer de nós que trabalhou em hospitais sabe que o que
deseja a maioria dos recém-especialistas é ser contratada e ficar no SNS.
Muitos dos recentes especialistas estão pendurados, à espera de serem
contratados e ao que consta pendentes da Secretaria de Estado do Tesouro. Não
abrem vagas. Nos números de 2016 vê-se que poucos foram os contratos e 70%
foram com termo (Relatório MS e SNS 2016). Estará o Estado à espera que lhes
aconteça como à menina do Capuchinho Vermelho e que venha um lobo e os coma? É
que os lobos estão por aí. É o mercado…
Por isso é de louvar a proposta da ministra da Saúde de
abrir vagas se não para todos, para quase todos. O que veio perturbar a
discussão foi a fidelização ser obrigatória. Ou seja, todos aqueles que desejam
ficar sentem-se incomodados se isso for obrigatório? Nem todos. Os
especialistas do Hospital de Santa Maria (Centro Hospitalar Lisboa Norte) com
um horário de 35 horas em que estão incluídas as de urgência ganham líquido
1400€. Se quiserem habitar em Lisboa têm que acasalar com alguém e mesmo assim,
se o outro tiver idêntico salário, ficam com uma taxa de esforço para a habitação
de 50%. Dir-me-ão que é a condição de muitos outros jovens com o mesmo grau
académico. É verdade. Mas acontece que estes, alguns dos especialistas de
Medicina, encontram no mercado quem lhes pague o dobro ou o triplo e com menos
urgências. É a chamada concorrência. E foi assim que perdemos excelentes
especialistas.
Trata-se então de ver quais as condições para não os
perdermos e fidelizar esta geração na qual reside o problema actual. Antes de
tudo, a possibilidade de exclusividade ou dedicação plena, pelo menos com os
salários praticados em 2009 quando deixou de haver essa oportunidade. Esta
geração quer também ter uma perspectiva de progressão na carreira, não pela
contagem de tempo, mas através de concursos públicos, tal como estão
estipulados nas carreiras médicas, mas que não têm ocorrido: grau de consultor,
assistente graduado, assistente sénior. Passam-se anos sem que se realizem
concursos. Por outro lado, uma das coisas mais atractivas nos hospitais
públicos é o trabalho de equipa, as reuniões de serviço, as decisões
colectivas. É preciso garantir tempo para isso. E também, para as
especialidades mais técnicas, a questão dos equipamentos e das instalações de
qualidade, que são variáveis entre os Centros Hospitalares. Ainda como grande
atractivo no meio hospitalar público é a possibilidade de integrar equipas de
investigação científica e haver disponibilidade para isso. E estar rodeado,
também em equipa, com outros profissionais, enfermeiros, assistentes
operacionais, técnicos superiores. Tudo isto tem que estar englobado num
projecto coerente, ter metas e pensar a priori em orçamentar os custos.
Se pensarmos só em financiar, os próximos milhões que vão
ser acrescentados no OGE vão cair no buraco das dívidas, particularmente às
farmacêuticas, que não andam a dormir. E o SNS e os seus objectivos não
conseguirão sobreviver à concorrência. Aí está para o demonstrar o Pacto
sectorial para a competitividade e internacionalização no sector da Saúde
assinado entre Salvador de Mello (CUF) e o ministro Siza Vieira em 29.03.2019 e
a gloriosa sessão realizada na FIL em 27.11.2019. Aí está a Universidade Nova
(pública) com acordos de formação de técnicos no Hospital da Luz e na CUF. O
dinheiro vindo do Estado servirá para entrar pelo SNS e sair pelo outro lado
para pagar aos Negócios da Saúde, sem o qual estes não sobreviveriam.
Transformar-se-á um serviço num mercado e isso faz mal à Saúde. (todos os
números citados foram pesquisados no trabalho Demografia Médica, elaborado pelo
meu colega João Álvaro Correia da Cunha).
Isabel do Carmo
Médica e professora da Faculdade de Medicina de Lisboa